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Superioridade relativa e o trabalho policial

Sempre achei válido traçar paralelos entre organização estrutural das forças armadas e das polícias (civil ou militar). As duas atividades possuem em sua essência o uso da força - enquanto uma é o monopólio da violência, a outra é a coerção estatal. Armas de fogo, primeiros socorros, muitas atividades práticas são também correlatas.

Eu detesto, porém, quando a associação passa a ser desmedida, e passa a ser utilizada para absolutamente tudo. Militares que medem a capacidade de sua força armada ao compará-las com alguma polícia, e o policial que se compara a qualquer soldado. Certa vez um policial me disse, lamentando, que a polícia brasileira não tinha a mesma liberdade dos americanos porque trabalhava de mãos amarradas. Isso se baseava em uma conversa que teve com um militar americano, que disse que tinha liberdade para disparar à vontade contra seus alvos.

Como no Brasil o policial não pode agir assim, o colega chegou a conclusão de que trabalhava de mãos amarradas.

Essa comparação é absolutamente desmedida - o militar relatava uma situação de guerra, e ele é proibido de operar em combate em solo americano pelo Posse Comitatus Act. Além disso, em lugar nenhum a polícia tem liberdade para atirar a esmo e causar destruição máxima.


A profissão militar e a policial, e eu fiz parte de ambas, são diferentes e possuem complexidades específicas.


Frequentemente vejo policiais que citam em artigos e livros a teoria de operações especiais do general McRaven. A doutrina possui alguns aspectos interessantes para a polícia, mas confesso que do meu ponto de vista, não são muitos. Um dos aspectos que considero relevantes e que observo capacidade de adaptação à polícia é a definição e aplicação de Superioridade Relativa. 

 A superioridade relativa é, em poucas palavras, a capacidade de uma força menor, mais preparada, equipada e assistida se sobressair a uma força amplamente maior. Apesar de possuir efetivo reduzido, seu potencial combativo é tanto que há uma desproporção de rendimento em combate, dando assim o trunfo ao menor. Por possuir equipamento, treinamento, informações, planejamento e oportunidade, exploram os pontos fracos do inimigo, garantindo a vitória.

Um bom exemplo é a batalha de Mogadíscio, Somália - Operação Gothic Serpent (Filme Black Hawk Down, lembrou?). Apesar da batalha ter ocorrido após um enorme revés aos americanos, os Estados Unidos perderam na batalha 18 militares. As estimativas de baixas do lado Somali, por sua vez, variam de 1000 a 2000 pessoas. Os americanos estavam melhor equipados, melhor treinados, mais coesos e organizados, com cadeia de comando bem estabelecida, satélites e etc. Por isso se sobressaíram  a uma turba de somalis equipados desorganizadamente, sem cadeia de comando bem definida, sem planejamento - agindo de maneira quase tribal.


Superioridade relativa na Polícia

O conceito de superioridade relativa mudou minha maneira de enxergar as coisas, desde que me explicaram a primeira vez em uma palestra sobre ações de comandos (no Exército), há uns 15 anos atrás. Passei a observar os locais onde passava e as tropas que tive contato e me questionar - se eu reduzisse aquele efetivo de dez pessoas para sete, e todo o valor gasto com salários desses três que foram retirados fosse convertido em treinamento, equipamento e outros recursos, a efetividade desse grupo seria multiplicada?

Ou, se ao invés de ter 100% do efetivo disponível eu tivesse 80%, e 20% estivesse sempre participando de treinamentos. Como se o policial treinasse 1 dia a cada 4 de rua. Esses 80% renderiam mais do que 100% sem treinar?

Ou ainda, se ao invés de se afundar em atividades burocráticas e administrativas, a liderança dessa força estivesse provendo informações de inteligência de qualidade, ele seria mais eficiente?

Eu já me convenci que o gestor de segurança pública padrão, aquele camarada de terno e gel, que ocupa cargos em secretarias municipais, estaduais ou ministérios, o faz por indicação política pura, ou por ter participado de algum curso na área - dentro de uma faculdade, sendo ensinado também por quem nunca atuou na área. 

A "gestão" dele é focada em construir uma reputação, ainda que desmerecida, que vai dar aquele empurrãozinho para o próximo cargo. Esse tipo, quando busca investimento na segurança pública, quase sempre o dinheiro cai em três itens:

Viaturas

Armamento

Coletes

São os itens tangíveis, que a população enxerga, e que talvez dê algumas migalhas a mais de votos na próxima eleição.

Muito legal, não estou demonizando a compra de viaturas, mas para atingir a superioridade relativa precisaríamos mais do que isso. 


Treinamento e organização


Em treinamento, no nível individual, o policial deveria ser submetido incansavelmente a treinamentos de uso de força contra força, armamento e tiro, primeiros socorros, gerenciamento de crise, direção ofensiva e defensiva, meios menos letais, defesa pessoal e imobilização, comunicação e etc.

No nível de pequenas frações, treinamentos em equipe, com entradas em casas, deslocamento à pé em vias urbanas e rurais, patrulhamento motorizado, etc.

No nível institucional, treinamento de gerenciamento de crises com estabelecimento de gabinetes, acidentes naturais, melhoria de processos e redução de carga burocrática, liderança, etc.



Equipamento 


Em equipamento, cada policial deveria ser dotado de todos itens necessários para cumprimento do seu trabalho. 

No nível individual, pistolas de qualidade, fuzis com óticos e lanternas, uniforme confortáveis, com qualidade com bom tratamento térmico, coletes leves e muito flexíveis (não essa pedra que compram no Brasil), capacetes high cut, kit primeiros socorros, rádios, espargidores de pimenta, taser e outros meios menos letais, etc.

No nível fração, viaturas preparadas para a missão a ser exercida, com sistema de comando e controle integrado, câmeras de frente com leitor de OCR e georeferenciamento e rádio veicular. Kit primeiros socorros coletivo, material de sinalização de trânsito, material de isolamento de área, etc.

No nível institucional sistemas de comando e controle, câmeras urbanas com OCR, sistemas de inteligência de sinais, sistemas de registro eficientes e integrados. Estrutura física para os policiais se exercitarem, treinar defesa pessoal, estandes de tiro, cidades simuladas para treino em situação, alojamentos e vestiários, salas de aula, salas de reunião, etc.

Isso tudo foi uma pitada, meu objetivo aqui não é definir um padrão, e sim alertar para a busca da excelência.


 Precisamos, como profissionais, parar de aceitar a mediocridade como padrão. Profissionalismo implica necessariamente a capacidade de cumprir sua função de maneira excepcional - a excelência na realização. O policial merece itens individuais excepcionais, e ser treinado neles. A instituição merece inovações tecnológicas, sistemas de comando e controle, centros de treinamento com professores excelentes. 

Na maioria das vezes o policial vai ser ver em efetivo reduzido para enfrentar os desafios profissionais, que ele tenha superioridade, ainda que relativa.



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